A ESQUECIDA REBELIÃO DE 1924
O
nevoeiro se dissipara. O céu estava claro, mas o frio seguia intenso
no início da tarde da terça-feira, 22 de julho de 1924, em São
Paulo. Uma profusão de casas e fábricas estava no chão, algumas
ainda envoltas em fumaça espessa. Pessoas corriam pelas ruas
carregando o que podiam para fugir de cenas que algumas viveram na
Europa alguns anos antes. Após 17 dias de “bombardeios
terrificantes” desfechados por baterias de canhões situadas na
colina do bairro da Penha, na zona leste, uma combinação de roncos
agudos vindos do céu agitava ainda mais uma população
aterrorizada. Quem olhasse para cima contaria dez aviões em formação
a 500 metros do chão. De repente, dois deles, um pouco maiores que
os demais, reduzem a altitude e soltam alguns objetos. O efeito seria
devastador. Seis explosivos de 60 quilos abrem crateras pelo centro e
arrasam casas e fábricas em bairros operários. Por sorte ninguém
morreu. Uma testemunha contaria, mais de cinquenta anos depois, que
“os aviadores tiveram ordem de jogar bombas no Brás; diziam que a
italianada era a favor da revolução”. O “Jornal do Commercio”
do dia seguinte contaria que “de diversos pontos partiu cerrada
fuzilaria contra os aviões”. Inútil. Os aparelhos ganham altura,
fazem uma curva sobre a estação da Luz e voltam para a zona leste.
Em quinze minutos pousariam numa pista improvisada próxima à
estação de trens de Guaiaúna, na Penha, então uma região quase
rural.
Aquele
era o décimo sétimo dia de um levante que entraria para a história
como a Revolução de 1924, ou “Revolução Esquecida”. Esse
último qualificativo talvez venha do fato de as elites cafeeiras
terem ficado assustadas com a sublevação da média oficialidade,
que chegou a receber apoio de setores populares. A rebelião que
envolvia São Paulo desde 5 de julho era resultado de uma intrincada
teia de tensões históricas. Suas raízes estão no agravamento de
problemas sociais, no autoritarismo dos governos da chamada República
Velha e em descontentamentos nos meios castrenses que já haviam
desembocado no movimento tenentista, dois anos antes.
Naquele
duro inverno, em meio a uma crise econômica, eclodiu uma nova
sublevação. Tropas do Exército e da Força Pública tomaram
quartéis, estações de trem e edifícios públicos e expulsaram da
cidade o governador Carlos de Campos. No comando, em sua maioria,
camadas da média oficialidade. Quatro dias depois, era instalado um
governo provisório, que se manteria até 27 de julho. O país vivia
sob o estado de sítio do governo Arthur Bernardes (1922-1926). Entre
as reivindicações dos revoltosos estavam: “1º Voto secreto; 2º
Justiça gratuita e reforma radical no sistema de nomeação e
recrutamento dos magistrados (…) e 3º Reforma não nos programas,
mas nos métodos de instrução pública”. No plano político,
destaca-se ainda “a proibição de reeleição do Presidente da
República (…) e dos governadores dos estados”.
Várias
guarnições de cidades próximas aderiram ao movimento. Apesar da
falta de um programa claro, setores do operariado organizado apoiaram
os revolucionários e exortaram a população a auxiliá-los no que
fosse possível. As ruas da capital foram palco de intensos combates,
com direito a fuzilaria, granadas e tiros de morteiros. Cerca de
trezentas trincheiras e barricadas foram abertas em diversos bairros.
A partir do dia 11, o governador deposto, instalado nas colinas da
Penha, seguindo determinações do presidente da República, decidiu
lançar uma carga de canhões em direção ao centro. O objetivo era
aterrorizar a população e forçá-la a se insurgir contra os
rebelados. De forma intermitente, os bairros operários da Mooca,
Ipiranga, Belenzinho, Brás e Centro sofreram bombardeio por vários
dias. Casas modestas e fábricas foram reduzidas a escombros e
cadáveres multiplicavam-se pelas ruas. Sem conseguir dobrar a
resistência, o governo federal decidiu bombardear a cidade com
aviões de combate.
Três
semanas depois de iniciada, a rebelião foi acuada. Dos 700 mil
habitantes da cidade, cerca de 200 mil fugiram para o interior,
acotovelando-se nos trens que saíam da estação da Luz. O saldo dos
23 dias de revolta foi 503 mortos e 4.846 feridos. O número de
desabrigados passou de 20 mil. No final da noite do dia 28, 3,5 mil
insurgentes retiraram-se da cidade com pesado armamento em três
composições ferroviárias. O destino imediato era Bauru, no centro
do estado. Deixaram um manifesto, agradecendo o apoio da população:
“No desejo de poupar São Paulo de uma destruição desoladora,
grosseira e infame, vamos mudar a nossa frente de trabalho e a sede
governamental. (…) Deus vos pague o conforto e o ânimo que nos
transmitistes”.
As
tensões não cessaram. No ano seguinte, parte dos revolucionários
engrossaria a Coluna Prestes (1925-1927). Mais tarde, outros tantos
protagonizariam – e venceriam – a Revolução de 30. A segunda
data, 9 de julho, é marcada pelo estopim de uma revolução que não
faz jus ao nome. Exaltada e cultuada como uma manifestação de
defesa intransigente da democracia, ela faz parte da criação de
certa mitologia gloriosa para São Paulo. O evento, em realidade,
representou a sublevação da oligarquia cafeeira contra a Revolução
de 30, que a retirou do governo e se constituiu no marco definidor do
Brasil moderno. Aquele processo não pode ser visto apenas como uma
tomada de poder por um punhado de descontentes. Suas causas envolvem
as contrariedades nos meios militares e contradições do próprio
desenvolvimento do país. A crise de 1929 acabara de chegar,
colocando em xeque o liberalismo reinante.
A
Revolução consolidou a expansão das relações capitalistas, que
trouxe em seu bojo a integração ao mercado – via Estado – de
largos contingentes da população. O mecanismo utilizado foi a
formalização do trabalho. As novas relações sociais e a
intervenção do Estado na economia – decisiva para a superação
da crise e para o avanço da industrialização – implicaram uma
reconfiguração e uma modernização institucional do País.
A
consequência imediata foi a perda da hegemonia da economia cafeeira,
centrada principalmente em São Paulo e parte de Minas Gerais.
Percebendo as mudanças no horizonte, as classes dominantes locais
foram à luta em 1932. Explodiu então a rebelião armada das forças
insepultas da República Velha, querendo recuperar seu domínio sobre
o País. Tendo na linha de frente a Associação Comercial e a
Federação das Indústrias (Fiesp), o levante tinha entre seus
líderes sobrenomes importantes do Estado, como Simonsen, Mesquita,
Silva Prado, Pacheco e Chaves, Alves de Lima e outros. O movimento
contou com expressivo apoio popular, uma vez que os meios de
comunicação (rádio, jornais e revistas) reverberaram as demandas
das classes altas. A campanha que precedeu a sublevação exacerbou
uma espécie de nacionalismo paulista, incentivado por grupos
separatistas. Entre esses, notabilizava-se o escritor Monteiro
Lobato. A síntese da aversão local ao restante do país
expressava-se na difundida frase, que classificava o estado como “a
locomotiva que puxa 21 vagões vazios”, em referência às demais
unidades da federação.
O
objetivo do movimento, derrotado militarmente em 4 de outubro, era
derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e aprovar uma nova
Constituição. Daí o nome “revolução constitucionalista”, uma
contradição em termos. Revolução é uma ação decidida a
destruir uma ordem estabelecida. A expressão “constitucionalista”
expressava uma tentativa recuperação do status quo, regido pela
Carta de 1891. Se era “constitucionalista”, não poderia ser
“revolução”. Os sempre proclamados “ideais de 1932” são
vagas referências à legalidade e à democracia. Mas não existia,
por parte do topo da pirâmide social paulista, nenhuma formulação
que fosse muito além da recuperação da hegemonia regional
(leia-se, dos cafeicultores). O 9 de julho segue comemorado como a
data magna do estado, uma espécie de 7 de setembro local. E os
acontecimentos de 5 de julho de 1924 continuam como páginas obscuras
de um passado distante.
Gilberto
Maringoni
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