Pular para o conteúdo principal

O BRASIL DE BOLSONARO | BC N.0 MARÇO 2019

O BRASIL DE BOLSONARO


Em outubro de 2018, a vitória de Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições presidenciais, com 46% dos votos válidos emitidos, teve o efeito de uma bomba e pôs o país em estado de comoção política. No mundo inteiro passaram a ser discutidas as consequências do acesso da extrema direita ao poder, não já num país de pequeno ou médio porte, mas de dimensões e população continental. Evocou-se até a possibilidade de uma “Internacional” de extrema direita.
Bolsonaro cresceu eleitoralmente na última semana da campanha eleitoral, em especial nos dias prévios à eleição, até atingir pouco mais de 46% dos votos válidos emitidos; nas semanas prévias seus percentuais eram bastante inferiores a 30%. Até um mês antes das eleições, a candidatura (cassada) de Luiz Inácio Lula da Silva, encabeçava as sondagens com percentuais situados entre 37% e 40%. O crescimento de Bolsonaro, qualificado de “surpreendente”, não obedeceu a uma captação maciça de “indecisos”, e não se baseou exclusivamente, nem principalmente, na degringolada das candidaturas de Marina Silva (Rede), abandonada pelos evangélicos ao seu nicho ecológico original (menos de 1%), e Geraldo Alckmin (PSDB); o deslocamento de entre 10 e 13 milhões de eleitores em direção da candidatura do capitão fascista captou amplamente entre os eleitores iniciais de Lula. Os “bolsomínios” que saíram espancando mulheres e homossexuais pelas ruas (e arrancaram as placas em homenagem de Marielle Franco no Rio de Janeiro, e assassinaram Mestre Moa do Katendê em Salvador) se apoiaram sobre uma vasta massa passiva e despolitizada que se inclinou nas urnas pelo candidato da extrema direita. Apoiadores de Bolsonaro realizaram pelos menos 50 ataques de rua em todo o país nos três dias posteriores a 7 de outubro: esse foi seu verdadeiro “voto”.
O pouco mais de 29% obtido por Fernando Haddad (PT), que deveria ser transformado em 30% se considerados os votos presidenciais do PSOL (um fiasco eleitoral de 0,5%) e pelo PSTU (0,05%, uma votação marginal), não poderiam ser considerados como a perda de dez pontos percentuais (ou de 20-25% do total de seus votos) pelo “lulismo”, na operação de transferência de seu caudal eleitoral para o “poste” da vez (que teria funcionado plenamente nas duas eleições de Dilma Rousseff). Dadas as características da situação política brasileira, originadas no golpe militar/parlamentar de agosto de 2016, e a polarização político-emocional da campanha eleitoral, os votos pelo PT, o PSOL e o PSTU, foram votos para a esquerda em condições políticas repressivas, e independentemente do programa de suas siglas. Isto é corroborado por algumas boas votações obtidas pelo PSOL para governo de estado (SP e RJ, por exemplo) ou para cargos proporcionais (o PSOL passou de seis para 10 deputados federais, a maioria de seus votantes votou pelo PT - Haddad - para presidente) e pela relativa recuperação eleitoral do PT em relação às eleições municipais de 2016.
Não foi, tampouco, uma “barragem nordestina” a uma ascensão fascista que conquistou 99% dos redutos tucanos, barragem alimentada pela Bolsa Família: em que pese Haddad ter sido vitorioso na região Nordeste (e só nela, dentro das cinco regiões brasileiras), Bolsonaro venceu em cinco de nove capitais nordestinas, incluída Recife. Ainda assim, a chapa PT-PCdoB, em que pese estar composta por uma desconhecida e um semidesconhecido do grande público, que tinham só 4% das intenções de voto em inícios de setembro, ficou só dois pontos percentuais em baixo da chapa Lula-Leonel Brizola em 1998, quando o “antipetismo” jogava um papel marginal, ou não jogava papel nenhum. Na Câmara de Deputados o PT ficou com 56 eleitos (as sondagens prévias lhe atribuíam 52), contra os 69 obtidos em 2014 (reduzidos a 61 depois da fuga provocada pelo afundamento do partido na lama da corrupção), ou seja, praticamente manteve suas posições, o que, depois da varrida da Lava Jato, deveria ser considerado quase um milagre, justificando a observação de Jânio de Freitas: “Com a exceção relativa do PT e mais do PSOL, os partidos desapareceram, fosse por falta absoluta de expressão, fosse porque dissolvidos nas inúmeras traições”. Desde setembro, FHC tentou publicamente unificar o vasto “centrão”, a base política da Nova República, desde o PSDB até a Rede, passando pelo MDB, o PPS de Roberto Freire e tutti quanti, colhendo um fracasso político, e depois eleitoral, espetacular.
O PSL (a sigla de aluguel do bolsonarismo) obteve 52 cargos de deputado, mas tratou-se de um conjunto cuja única “coerência” foi dada pelo fato de 21 deles serem policiais (sem contar os militares retirados), ou seja, uma unidade não política, mas corporativa, acompanhada de uma cambada heterogênea de “traidores”. O acompanhante do antigo capitão de artilharia na chapa presidencial foi um general retirado (que provavelmente passará à história como autor da proposta de “Constituinte de Notáveis”, “notavelmente” desastrada) filiado ao igualmente ignoto PRTB. A base parlamentar do governo Bolsonaro são as bancadas evangélicas/BBB (Bíblia, boi e bala), espalhadas em diversos partidos e que já controlavam (inclusive sob os governos petistas) quase 50% da Câmara e do Senado, que negociam até o último centavo das verbas públicas, acrescidas da contribuição policial/militar do PSL. A base política do candidato direitista não tinha sido construída por nenhum marqueteiro, mas pela progressiva criminalização da política e das lutas sociais, e pela sua aproximação às Forças Armadas, conquistada pela intermediação dos generais e brigadeiros Augusto Heleno, Oswaldo Ferreira, Aléssio Ribeiro Souto e Ricardo Machado, retirados. Bolsonaro construiu seu caminho como continuação da força militar Minustah no Haiti (chefiada por Augusto Heleno, cabeça do programa de governo de Bolsonaro), da intervenção política brasileira (via PSDB paranaense) na deposição cívico-militar do governo Lugo no Paraguai, da intervenção militar no Rio (saudada por alguns como um ataque estratégico à “banda podre” da polícia carioca), do assassinato de Marielle Franco e Anderson Dias, da tropa de choque nas favelas e dos assassinatos de jovens negros, da judicialização e militarização das lutas sociais e políticas.
Considerados isoladamente todos os partidos, o PT ficou como o maior partido da Câmara dos Deputados pela primeira vez, devido ao retrocesso eleitoral dos partidos neoliberal/fisiológicos do chamado “centrão”. Certamente, como escreveu um analista externo, “os mercados se entusiasmaram com Bolsonaro”: a Bolsa de Valores reagiu com uma alta de 4,57% e um volume recorde de negócios no day after do primeiro turno presidencial. O entusiasmo já existia antes: nos últimos dois meses de campanha, as doações do empresariado e da banca à chapa de Bolsonaro compensaram sua falta de tempo na propaganda eleitoral gratuita na televisão, indicando o caminho aos candidatos empresariais (como João Dória, que virou as costas a Geraldo Alckmin em favor de Bolsonaro) e pentecostais. O apoio dos mercados não seria, porém, garantia absoluta de estabilidade política para a Bolsonaro, num país mergulhado na pior crise econômica de sua história, com mais de trinta milhões de desempregados e subempregados, um retrocesso de 10% do PIB per capita em apenas dois anos (um índice de catástrofe bélica), uma dívida pública federal de R$ 4 trilhões e uma dívida total do Estado superior a R$ 5 trilhões, perfazendo uma dívida pública total de 80% do PIB (se considerada também a dívida privada, esta supera com folga 100% do PIB).
Como apontou um correspondente estrangeiro, “os custos do ajuste desgastarão quem ocupar a presidência, e com muita velocidade”; a única proposta econômica de Bolsonaro durante a campanha eleitoral, além de ataques aos direitos sociais, foi a criação de um superministério econômico unificando as pastas de Fazenda, Indústria, Planejamento e Secretaria Geral, ou seja, governar com mão de ferro a economia, como se este recurso bastasse para superar a crise da acumulação capitalista, de raízes mundiais e não nacionais. Dai que, sem deixar de cuspir fogo contra Lula, Dilma e o PT, o Estadão conclamasse, em editorial de setembro, por um “pacto pela governabilidade”, porque “uma vez fechadas as urnas, será necessário promover um grande entendimento nacional, que só funcionará se vencedores e vencidos reconhecerem o quadro de descalabro fiscal”; e insistisse, novamente em editorial em outubro, “por um pacto nacional”, “alguma forma de convergência em torno de interesses comuns... que se espera do próximo governo e também dos partidos que lhe farão oposição”. A chapa PT/PCdoB, que já estava no centro (embora seu eleitorado fosse de esquerda) moveu-se para a direita, acenando para o mercado financeiro (depois de prometer enfrentar o “cartel dos bancos”) e para o cadáver político dos partidos do “centrão”; e também para o alto comando militar.
Jair Bolsonaro, que votara o impeachment de Dilma Rousseff em nome e em memória do principal torturador da ditadura militar, anunciara em 2014 sua intenção de concorrer ao Planalto em 2018. O semidesconhecido parlamentar democrata cristão só tinha até então se notabilizado por ter defendido, em 1999, em entrevista à TV, o fechamento do Congresso e o fuzilamento de 30 mil pessoas durante a ditadura militar, o que foi visto como uma extravagância própria de um país que elegera como deputado o palhaço Tiririca. No mesmo ano de 2014, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do MDB que compartilhava o Poder Executivo com o PT, criava o “blocão” de 214 deputados que em 2016 foi ampliado no “centrão”, a tropa de choque de 280 deputados que votou o impeachment de Dilma Roussef. A movimentação era uma resposta tardia da coluna vertebral da “classe política” brasileira às mobilizações populares que em 2013 tinham abalado o país. João Dória, eleito, em 2018, governador do estado mais rico e de maior colégio eleitoral (22%) da União, conduzia então um programa na TV que só entrevistava empresários.
No auge das mobilizações de rua pelo impeachment de Dilma, em 2016, dirigentes políticos do MDB e do PSDB, que esperavam colher institucionalmente (com Michel Temer) e eleitoralmente os frutos da empreitada golpista, subiram confiados no palanque montado na Avenida Paulista em frente à FIESP e ao “pixuleco” de Lula, só para ouvir uma sonora vaia e vivas a Bolsonaro, manifestação que os obrigou a descer apressadamente do palco imaginário de sua glória. Os aprendizes de feiticeiro, herdeiros da ala civil do golpe militar de 1964, tinham soltado o gênio da garrafa, e não sabiam como reintroduzi-lo. As igrejas evangélicas, que em 2002 firmaram um pacto com Lula e indicaram seu candidato a vice-presidente, mudaram de lado. As manifestações em favor da intervenção militar e de Bolsonaro (promovidas frequentemente pelos mesmos grupos) que salpicaram a greve dos caminhoneiros de maio, foram pavimentadas por esse processo político. Sem esquecer a bancada “Bíblia, Boi e Bala” (BBB), que apresentou um “Manifesto à Nação”, documento da Frente Parlamentar Evangélica, no qual, para além de orientar o voto dos seus fies militantes, sugerindo que brasileiros e brasileiras exercessem a cidadania “escolhendo seus candidatos pelo alinhamento deles com os valores do Reino de Deus”, também conclamou o reordenamento da família, em seu formato nuclear, desconsiderando todo avanço acerca de novos arranjos familiares e de laços de solidariedade.
O que entrou em fase terminal na crise de maio foi o golpe parlamentar-institucional-militar de 2016 e sua base política, que foi a grande derrotada nas eleições. O apoio a Bolsonaro cresceu conforme se ascendia na escala da renda familiar (atingindo 70% na faixa superior a cinco salários mínimos); fato notável é que ele também crescesse na escala ascendente dos níveis de escolaridade, superando 60% entre os detentores de diploma de ensino superior, que tinham apoiado majoritariamente as chapas e governos encabeçados pelo PT na década precedente. Um setor que crescera espetacularmente com programas como o Prouni e o Fies, que ostenta hoje, no entanto, recessão e desemprego mediante, uma taxa de inadimplência superior a 50%. O fator político estrutural da ascensão de Bolsonaro, porém, foi a cassação e a prisão de Lula. Empresários bancaram, com contratos de até R$ 12 milhões, o disparo maciço de calúnias e fake news contra a chapa PT/PCdoB via whatsapp. O efeito disso foi bastante relativo, pois o que Bolsonaro dizia, num linguajar que não vacilava em usar termos chulos, era o que se podia ouvir sem aguçar o ouvido em muitos lugares nas ruas, táxis ou ônibus, em programas sensacionalistas de TV tipo “Cidade Alerta” e também nos inúmeros programas das diversas igrejas evangélicas.
Para entender porque o fascismo prospera em determinado espaço, tempo e lugar é prioritária a análise política, caso contrário o fascismo político seria perene e constante. A conjuntura política de 2018 criou as bases de sua prosperidade eleitoralmente vitoriosa. Para uma concentração de seus partidários na Avenida Paulista, Bolsonaro transmitiu sua intenção de varrer do país e até da vida seus opositores “vermelhos”. Os fiscais eleitorais e a polícia se entusiasmaram, invadindo mais de 30 universidades públicas, centros acadêmicos e sindicatos docentes, sob o pretexto de combater “propaganda política” (retirando, por exemplo, uma faixa antifascista da Faculdade de Direito da UFF, que não mencionava nenhum partido ou candidato), provocando atos estudantis massivos e a manifestação contrária até de autoridades das universidades e do próprio STF. A resistência antifascista militante ganhou dimensões de massa com o #elenão e as mobilizações e atos de rua convocados por coletivos feministas e movimentos sociais, realizados inclusive em outros países. Bolsonaro fugiu dos debates eleitorais.
Para o segundo turno, o PT convocou uma “frente democrática” dos partidos, inclusive adversários, que se reivindicassem da democracia. A “frente” fracassou de modo ensurdecedor, os “democratas notórios” (o PSDB de FHC, o PSB de Márcio França ou o PDT de Ciro Gomes) ficaram democraticamente em cima do muro, revelando menos uma vontade suicida do que o desejo voluptuoso de se somar ao carro vitorioso da extrema direita, demonstrado de modo exemplar pelo PSDB do “Bolsodória”. O pouco importante apoio a Haddad de Marina Silva mais pareceu uma cusparada em sua cara. A “democracia brasileira” fracassou miseravelmente quando posta de nariz diante do fascismo. Que dúvida pode caber sobre se esse fato favoreceu a vitória de Bolsonaro e sua chapa? Nessas condições limítrofes, não foi graças à sua aproximação com as igrejas católica e evangélica e com o Estado Maior das Forças Armadas, ou ao rebaixamento de seu moderado e conciliador programa, mas a despeito disso, que a chapa PT/PCdoB obteve no segundo turno 44,9% dos votos válidos, pouco menos de 47 milhões, contra 55,1% (57,8 milhões) de Bolsonaro, uma diferença inferior aos 18-20 milhões de vantagem com que a chapa de extrema direita pensava contar. No segundo turno, Haddad cresceu em quase 16 pontos percentuais, Bolsonaro só em nove. O movimento para a direita do eleitorado foi indubitável e enorme, mas inferior aos 60% dos votos que as sondagens iniciais lhe atribuíam. Os quase 16 milhões de votos suplementares de Haddad/Manuela resultaram dos atos públicos, do #EleNão e da mobilização de rua, e do impacto que eles provocaram no eleitorado mais relutante. Estamos, com Bolsonaro, diante de um “Lula de direita” cuja simbologia eleitoral “tirou do armário” a alma mal (ou jamais) lavada da escravidão, do machismo homofóbico e antifeminino, e do autoritarismo dos brasileiros? Os cérebros mais lúcidos do establishment, no entanto, não celebraram o segundo turno de 2018 chamando a “varrer a petralhada vermelha”, mas exortando (inclusive a Bolsonaro) à “reconciliação” e à “unidade” nacionais.
Diversamente de 1964/1968, o Brasil não encara em 2019 uma conjuntura de crescimento interno e internacional, mas uma crise econômica estrutural e uma desaceleração internacional. O programa econômico do governo militarizado a ser empossado em 2019 é o de um neoliberalismo privatista rampante, eivado de contradições. A eliminação do déficit fiscal e a reforma da Previdência, conclamadas pelo empresariado interno e externo, se estraçalham contra o tamanho da dívida pública (que beneficia o grande capital financeiro) e contra o fato de que 44% dos gastos previdenciários da União correspondem às Forças Armadas, opostas a uma privatização completa da Petrobras.
O Brasil não ficou dividido pelo irracionalismo (embora Bolsonaro tenha se esforçado em demonstrar o contrário), mas por uma polarização econômica, social, regional, étnica e até sexual, uma polarização de classe sem paralelos. O enorme voto pelo PT no Nordeste não foi o de um “saudosismo lulista”, mas o da região que mais sofreu a crise econômica e o crescimento da pobreza extrema nos últimos dois anos. Bolsonaro deverá passar por várias crises para resolver essas contradições com os métodos de extrema violência que propõe. E essas crises abrirão outras possibilidades, baseadas na intervenção dos trabalhadores e do movimento popular.
Bolsonaro estruturou um governo da frente golpista de 2016, que apontou para políticas de privatização do patrimônio público e de avanço imperialista sobre as riquezas naturais do país, suprimindo direitos sociais, e retrocedendo no combate às opressões das minorias, aumentando a violência rural e urbana e atacando de forma contundente o funcionalismo público. Para avançar e retirar conquistas históricas da classe trabalhadora anunciou que iria criminalizar o ativismo, atacar sindicatos e combater os movimentos sociais, buscando neutralizar ou eliminar qualquer oposição. Um movimento operário classista deverá se pôr em pé, se delimitando das armadilhas da conciliação de classes que abriram o caminho para o retrocesso político de 2018. As plenárias sindicais com delegados de base que discutem planos de luta contra a Reforma da Previdência e pelas reivindicações prementes estão na ordem do dia.

Comentários